Charles & Erik
A cadeira de
rodas range ao passar sobre a superfície de borracha. O plástico das rodas
improvisadas é torto e precisa de um pouco mais de força para ser empurrado do
que o das cadeiras normais. A luz é pouca, natural, na sua maioria. Nenhuma
lâmpada por perto, nenhuma fiação, nenhuma grade. Uma prisão feita de plástico
e borracha. Suspensa e longe de todos. O corpo magro e musculoso se levanta em
meio aos lençóis. Cabelos ralos, brancos, penteados para trás. Um leve sorriso
ao perceber o visitante.
- Chegou cedo,
Francis. – a voz é grave, rouca, idosa, mas com uma profundidade, uma força que
não parecia caber naquele corpo e, no fundo, um tom de chacota.
- Francis?
Porque essa formalidade agora, Erik? – o homem careca desliza sua cadeira de
rodas com certa dificuldade no chão emborrachado. – Como está, velho amigo?
- Da mesma
maneira que nos últimos 15 anos, Charles. Como estão Grace e Scott? E o bebê? –
Erik pega em um armário de madeira um par de xícaras e uma chaleira.
- Estão bem. É
uma menina! Eles vão chamá-la de Megan. – diz Charles com um sorriso – Camomila
se tiver.
- Claro. Mande
minhas... – Charles levanta as sobrancelhas olhando para o amigo, Erik solta o
ar dos pulmões aceitando a inaudível intervenção – concordo, é melhor não.
Independente disso, agradeça Anna Marie pelo vinil. Acredito que Remy não
gostará de ouvir sobre mim, mas é o mais educado a se fazer. – Erik coloca a
chaleira sobre um fogão de vidro, e passa a procurar algo em suas estantes.
- Vinil? Claro
que agradeço. E desculpe-me por vir de mãos vazias hoje. Muita coisa
acontecendo. – Charles parece sério por alguns instantes.
- Tem algo que
queira conversar, Charles? – Erik vira-se com velocidade para o homem na
cadeira de rodas - Wanda, Pietro, estão bem?
Charles levanta
a mão direita e a estende, Erik se afasta, como que por impulso.
- Sim, velho
amigo. Eles estão bem, não há nada que você precise se preocupar.
Mesa posta,
xícaras simples de louça amarelada. O cheiro de camomila no ar. Uma vitrola
adaptada, tocando Orpheus, de Stravinsky. O tabuleiro de xadrez sobre a mesa.
Alguns risos, conversas sobre os velhos tempos...
- Você tem que
entender, Charles. Eles não vão ser dóceis para sempre. – Erik, com um sorriso
leva sua xícara a boca.
- Quantas vezes
vamos ter essa mesma discussão, Erik? – o velho de cabelos brancos abre ainda
mais o sorriso, Charles move a torre da rainha de A2 para A6, matando a torre
de Erik - Você e sua síndrome de Alexandre... Alias, de Carlos Magno! – Charles
também sorri.
- É isso que
você nunca entendeu, Charles. Eu não sou Alexandre. Sou Filipe da Macedônia! –
Erik move seu cavaleiro, de C7 para A6 e mata a torre branca. – Eu não quero
ser o conquistador. Eu quero prover um reino para as minhas crianças.
- Mas a que
custo? Ao custo do medo? Ao custo da paz? – Charles observa o tabuleiro, franze
o cenho, levanta a sobrancelha.
- Você me vê
como um ditador? Você crê que eu não serei benevolente? – o chá esfria enquanto
os dois senhores se observam.
- Erik, você tem
muitas qualidades. Você realmente tem! Piedade não é uma delas – Charles move
os dedos como se fosse tocar sua rainha, mas desiste e move um peão de F4 para
F5.
- Me pegou,
velho amigo – Erik observa o tabuleiro com certo espanto – Não sei como escapar
dessa. – Charles abre um sorriso – Digo o argumento. O jogo, bem, esse sempre
foi injusto comigo.
- Você sabe que
eu nunca trapacearia – Charles coça a sobrancelha enquanto olha o amigo tomar
sua decisão.
- Você imagina
que eu construiria um mundo como o de Orwell em 1984? Onde todos têm medo de
viver, medo de ser, medo de olhar as voltas? Onde seus vizinhos podem te
entregar por você PENSAR contra o governo? Onde você precisa ter medo dos seus
filhos, da sua própria mente? Onde você precisa dissimular, ser o que os outros
querem? – Erik hesita por um instante, move a mão sobre seu cavaleiro
novamente, mas não o toca – o que você não vê é que esse mundo já existe,
Charles. Eles estão lá fora, com seus celulares, câmeras e julgamentos. Todos
armados e prontos. Não é necessário nenhum aparelho governativo, nenhuma
ficção, nenhuma polícia do pensamento. A sociedade moderna te julga, condena e
abate. Basta você ser diferente, pensar diferente.
- Você leu muito
Schopenhauer na sua vida. – os dois amigos riem – Entendo o que você está
dizendo. Mas isso é uma visão muito pessimista do mundo. Existe o bem, existem
pessoas boas. Você viu, você sabe. Nós convivemos por muito tempo com pessoas
boas e que acreditam num futuro melhor. Nós construímos muito juntos. Você se
lembra. Eu sei que se lembra.
- Agora você
está subestimando as pessoas lá fora, meu amigo. Montag inicia sua jornada como
um iletrado acreditando em tudo que ouve, mas assim que ele tem contato com o
conhecimento. Assim que ele cede à curiosidade inerente a todo ser humano. Ele
cresce, ele evolui, ele nota aquele mundo onde ele vive. Ele nota que prazer
não é tudo, que pensar e saber é muito mais importante. – Charles olha para o
tabuleiro – Você sabe que ainda é sua vez, não?
- E o que a
sociedade faz com ele, Charles? Ele é perseguido, rejeitado. – Erik move seu
peão da B4 para B3, ao lado de um peão branco.
- É ficção,
Erik. É uma especulação de um escritor de meados de cinqüenta. – Charles, passa
seus dedos sobre sua rainha, sem tocá-la, sobre o peão duas casas a frente,
volta sua mão para a torre, mas nada move no tabuleiro - Bradbury é um ótimo
escritor. O conto, ”O Bombeiro”, é fascinante. O filme, “Fahrenheit 451”, é primoroso.
Mas é ficção, Erik. A criação de um homem está limitada ao seu próprio
conhecimento. Não é a verdade absoluta.
- Não você, caro
amigo, você não está limitado ao seu próprio conhecimento.
- Ética, Erik...
ética... – Charles move sua rainha em diagonal, de C1 para F4, atrás de um de
seus peões.
- A ética é
quebrada a cada segundo. É ingênuo pensar que não. – Erik retorna seu cavaleiro
para C7 - E ética é um luxo que não temos. O mundo como conhecemos está na
beira do fim. A revolução está prestes a chegar. Basta saber quem vai atacar
primeiro, eles ou nós.
- Ética é a
única coisa que nos separa desses que você tanto odeia. – Charles olha para o
amigo, pensa por um segundo e move um de seus peões de F5 para F6, encarando um
peão adversário - Os únicos “eles” que existem são aqueles que repudiaram a
ética. Como aqueles que tatuaram esses números no seu braço, meu caro.
- Monstros. Eles
eram monstros, não humanos... nada além... ratos... – o homem grisalho
gesticula com raiva.
- Sofista! –
Charles aponta para o amigo, os dois riem.
- Platônico. –
Erik aponta de volta e os dois riem novamente.
- O que seriamos
se repudiássemos a ética e os atacássemos da mesma forma que nos atacam? –
Charles faz um gesto em direção ao tabuleiro, indicando a vez do adversário - Seriamos
exatamente como eles. Como construiríamos uma sociedade assim, baseada no ódio?
- E você propõe
o que? Que nossa sociedade seja construída sobre amor e compreensão? – Erik move seu peão de G7 para G6,
afastando-o de seu rei e prostrando-o ao lado do peão branco - Os seres humanos
dizem isso há séculos. Milênios para ser mais exato. Abraão, Moises, Sidarta,
Lao, Cristo, Maomé... tantos e tantos outros. Tantos tentaram passar essa
mensagem de compreensão e eles não entenderam até agora. Você, com sua ética,
não será o messias que colocará isso nas cabeças deles. Mesmo que você tenha
esse poder.
- A raça humana
cresce, a raça humana evolui, Erik. Basta crer, basta ver!
- Eu sei, somos
fruto dessa evolução. – Erik gesticula largamente - Para a perfeição prevalecer,
o imperfeito deve perecer.
- Você realmente
acha isso? - Charles move sua rainha
novamente, de F4 para H4 - Você acha que eu devo perecer? Sou imperfeito,
calvo, paralítico, contraditório. Humano! É isso que você vê quando olha para
mim, meu amigo? Algo a ser ceifado da terra?
- Não, Charles.
Eu vejo esperança quando olho para você. – o homem careca olha o amigo com
surpresa - Não só a esperança que você cultiva. Mas a esperança de que você
note o quanto está errado, note que o único futuro possível é a revolução e
note que sua ética de deixá-los seguir seus caminhos livremente só vai nos
destruir.
- Você me chama
de messias, mas age e fala como um profeta do fim do mundo.
- Você crê na
capacidade humana da mesma forma que Marx “previu” que o capitalismo seria o
caminho natural para o socialismo, meu amigo. Na teoria é muito bonito, mas a
prática não é tão bela, a prática pode falhar. – Erik move o cavaleiro preto
para E8.
- E você crê que
o conflito faz a sociedade humana crescer. Toda evolução humana é causada por
forças que se enfrentam, que se contradizem e criam algo novo. É a dialética de
Hegel! – Charles move sua rainha novamente, dessa vez na vertical, até H6,
frente a um peão negro – Mas você se esquece que pensando dessa forma a evolução
não vem de um lado triunfando sobre o outro e sim de uma síntese entre os dois.
Um Geist.
- Dialética é um
método argumentativo, nada mais. – Erik, sem pensar muito, move um de seus
peões de B3 para B2 - É o que estamos fazendo, ela não move o mundo, ela move
as mentes.
- E o que move o
mundo em sua essência, meu caro? As mentes. As mentes fazem com que as práticas
existam, as práticas movem o mundo em si. – Charles move sua torre remanescente
de F1 para F4. Erik responde o movimento prontamente movendo seu peão de B2
para B1, transformando-o em uma rainha.
- Cheque. – Diz
o homem grisalho.
- Você diz o meu
cheque argumentativo, ou o seu no jogo? – Sorri o homem na cadeira de rodas,
que move seu cavaleiro de G3 para F1, bloqueando o cheque-mate.
- Concordo
contigo que as mentes fazem o mundo, que as mentes fazem o futuro. Quem tiver
as mentes da juventude governará o futuro. Mas sua confiança... – Erik move sua
nova rainha para E1 – sua confiança de que as mentes da juventude serão
cativadas para o bem, para a aceitação, para união. Essa sua esperança,
Charles, é mal cabida.
- Eu continuo tendo
esperança, velho amigo. – Uma sirene toca ao fundo. – Nosso tempo acabou por
hoje.
Erik retrai o
corpo com certa velocidade. Tira a chaleira do fogão de vidro, guarda-a junto
das xícaras e senta-se na cama, olhando para o convidado.
- Você sabe que
dessa vez eu ganhei, não sabe? – Sorri para o homem na cadeira de rodas.
- O argumento ou
o jogo? – Pergunta o careca, os dois sorriem.
- Até semana que
vem?
Esse texto trás uma paz, por causa do diálogo simples, sem muitas palavras rebuscadas. Parabéns! Beijo
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTexto riquíssimo em detalhes. Consegui ouvir as vozes dos personagens. Conheci o blog agora e já estou ansiosa pra saber se tem mais histórias como essa.
ResponderExcluirÓtimo o texto, me deixou leve com o diálogo do texto, tem mais histórias? Quero ler outras..
ResponderExcluirNossa, como eu gosto de vir aqui... A concisão do seu texto, a riqueza de detalhes... Instrumentos inigualáveis para prender um leitor perspicaz.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirAdorei o seu conto, pois consegui imergir no diálogo dos personagens e levantar várias questões comigo mesma. Sua escrita é muito leve e fácil, o que ajuda o leitor a embarcar com facilidade pelas palavras escritas.
Beijos!
Super amei o post!
ResponderExcluirGostei das imagens que compartilhou, e o texto inspirador demais.
https://blogdajenny2014.blogspot.com/