Alfred & Bruce
O homem
baixo e calvo de cabelos brancos e bigode escuro empurra um carrinho pelo
corredor. As rodas rangem sobre o tapete importado, o cheiro de café fresco e
torradas exala para dentro do quarto. Duas batidas na porta.
- Tomas
era meu amigo, mestre Bruce, não o senhor. – A expressão de surpresa, do homem
na cadeira da lugar para incógnita – Eu vi o senhor correr por esses corredores
quando tinha apenas quatro anos. Eu ajudei o seu pai a te tirar daquele maldito
poço quando caíra. Eu lhe segurei em meus braços durante o funeral de Tomas e
Marta. Eu lhe ensinei frações e a resolver equações do segundo grau, lembra-se
– Bruce sorri – Você tinha dificuldades em entender a fórmula de bhaskara, mas
assim que a entendera, não havia exercício que não conseguisse resolver. Eu vi
o senhor se formar anos antes do que eu poderia esperar. Eu vi o senhor
treinar e colocar o capuz pela primeira vez. – O mordomo abaixa novamente a cabeça
e olha para o sangue nas próprias mãos – Eu tenho medo de quando será que o
senhor vai colocá-lo pela ultima.
- Mestre
Bruce? O senhor está acordado? O café está pronto. Mestre Bruce? – soa a voz
ligeiramente rouca com um carregado sotaque inglês.
- Pode
entrar Alfred, estou acordado. – a voz grave responde.
Alfred
abre a porta, empurra o carrinho com uma bandeja coberta por uma redoma de metal
e a encosta próxima a mesinha no canto do quarto. Bruce, sentado em uma
cadeira próxima, ainda vestindo metade de seu uniforme, sorri para o mordomo. O
corpo musculoso e castigado do empresário exibe o olho esquerdo inchado, vários
hematomas nos braços, um corte na sobrancelha direita, um pouco de sangue
molhando a camiseta que denotam acontecimentos da noite passada.
- Mestre
Bruce, acredito que os pontos que fiz em suas costas estão a ceder – diz o
mordomo com toda a sua pompa britânica. Bruce olha por cima dos ombros.
- Sinceramente, eu nem senti. – diz pegando
uma torrada e a manteiga.
- O senhor
tem sorte que eu trouxe a caixa de primeiros socorros, como sempre. Poderia,
por favor, retirar a camisa, para que eu possa retificar os danos que o senhor
causou em meu trabalho da noite passada? – Alfred abre a pequena maleta que
estava escondida sob o carrinho e veste uma luva cirúrgica, enquanto isso,
Bruce tira sua camiseta coberta de sangue e a joga no chão.
O inglês olha
para a mancha de sangue no chão, levanta uma sobrancelha, Bruce percebe e
movimenta-se para pega-la, mas antes que consiga o mordomo puxa-o pelo ombro e começa
seu trabalho com a agulha de sutura. O outro não esboça nenhuma reação de dor,
e antes mesmo de dar uma única mordida em seu café da manhã, ele franze o cenho
por um instante e pergunta, um pouco hesitante e sem olhar para o mordomo
- Alfred,
você acha que o que eu faço é certo?
- Mestre
Bruce, não cabe a mim responder essa pergunta. – o homem calvo para seu
trabalho de sutura por um instante, antes de dar mais um ponto.
- Não
estou perguntando como seu patrão – Bruce vira-se, sua expressão é um misto de
preocupado e triste – Estou perguntando para um amigo.
O mordomo
na mesma hora para o que está fazendo, afasta-se por dois passos e caminha até
a cama. Ajeita o lençol impecável e intocado e senta-se olhando para seu
patrão.
- Nesse
caso, mestre Bruce, eu não me vejo na capacidade de lhe responder como um
amigo, pois não vejo o senhor como um. – o homem calvo abaixa a cabeça ligeiramente.
- Alfred?
– Bruce responde claramente surpreso.
- Você
então não me vê como amigo porque me vê como filho?
- Não,
Mestre Bruce! Eu nunca poderia substituir seus pais! Longe de mim! Não é o que
eu quis dizer. – O senhor inglês responde antes mesmo que Bruce possa
pronunciar mais uma palavra.
- Eu acho
que deveria ser o que você quer dizer, porque eu te vejo como um pai. – Bruce
sorri novamente, e pela primeira vez, o mordomo sorri de volta, visivelmente
emocionado. Alfred suspira, e deixa os ombros livres, solta o corpo por alguns
momentos. – então eu pergunto novamente. Você acha que o que eu faço é o certo?
- Sim.
Alguém tem que estar lá para o oprimido, para o violentado. Alguém tem que proteger
o mais fraco. E se a polícia é tão ineficaz e corrupta para fazê-lo, há de ser
do próprio povo que surge tal defensor. – o inglês prossegue com olhos tristes
– me dói imaginar é que tenha que ser você a fazê-lo. Alias, que você sinta que
tem que fazê-lo e que não há ninguém mais para tal.
- Não acho
que não há ninguém mais para tal. O Clark, a Diana, o próprio Dick, também
fazem o mesmo e... – o mordomo interrompe.
- O que
quero dizer é que, eu me sinto parcialmente culpado por você estar lá fora todas
as noites. Eu te criei, parte de você é minha responsabilidade. E eu tenho medo
de ter falhado com você, com seus pais. Eu não quero enterrar outro Wayne na
minha vida. – o inglês fala com olhos mareados.
- Não
posso garantir que eu não vá mais colocar aquela máscara. Muito menos que... –Bruce
suspira - o pior aconteça hoje, ou amanhã. Mas nunca se sinta culpado por
minhas atitudes. É minha responsabilidade, são minhas decisões. – o homem para
por um momento - E, Alfred, se te pesa tanto me ver assim, é só me falar. Você
não precisa estar aqui e me ver me destruir aos poucos. Eu não quero que faça
nada que não se sinta a vontade em fazer. Posso, não sei, te transferir para o
nosso apartamento em Metrópolis, por exemplo.
- Mestre
Bruce, o senhor realmente acha que eu faria algo se não quisesse? – o mordomo
fala de forma séria - Eu lhe ajudo com todas as coisas relacionadas ao morcego
por vontade própria. Eu sei que o senhor não vai parar, eu sei que o pior pode
acontecer. E antes eu esteja aqui para remendá-lo, do que o senhor fazê-lo
sozinho. – ri levemente - Por Deus, os seus pontos de sutura são horrorosos. –
Bruce abre um sorriso.
- A
lavanderia faz isso. – Alfred abre os braços, gesticulando.
- Preparar
a minha comida?
- Eu adoro
cozinhar.
- Arrumar
a minha cama?
- Há dez
anos o senhor não dorme em casa.
- Limpar a
casa?
- Eu moro
aqui.
- Para que
eu te pago então?
- Eu
também não sei. Basicamente o senhor me paga para cuidar da minha casa,
cozinhar com bons ingredientes e andar em carros de luxo. Claro, eu trago
algumas sobras para o senhor, costuro suas costas a cada dois dias e te levo
para um ou outro evento social, mas eu penso nisso como um favor. – Bruce gargalha
– Na verdade o senhor me paga lembrá-lo de que mesmo num mundo de deuses o
senhor ainda é humano e isso é sua maior arma.
- Alfred,
não há salário no mundo que pague isso.
- Então
devo informar para o Lucius sobre o meu aumento?
- Claro,
como quiser. – Bruce volta-se para suas torradas meneando a cabeça e sorrindo. –
Quer saber, Alfred. Eu acho que o morcego precisa de um dia de folga.
- Talvez
não o morcego, mas com certeza Bruce Wayne precisa.
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