Quem é o Mestre? – Usando combate dentro da narrativa

RPG normalmente foca-se em três pilares: exploração, interpretação e combate. Na minha opinião o jogo torna-se mais interessante e imersivo quando as bordas entre esses pilares não são tão rígidas, o que faz com que seu jogador se sinta mais a vontade para criar e agir de forma diferente do esperado para uma determinada situação. Além, claro de ser necessário você encontrar o equilíbrio entre os três que sua mesa precisa e as mecânicas e dinâmicas específicas que divertem seus jogadores.

O Quem é o Mestre não foi criado para dizer “o que você tem que fazer” ou “dizer que isso funciona, com certeza”, mas sim para dar dicas e falar sobre coisas que uso e usei nas minhas mesas ao delongo dos anos, e talvez (tomara) que esses exemplos possam te ajudar, tanto usando-os como descrevo aqui, ou mesmo criando as suas dinâmicas e ferramentas para obter resultados diferentes dos meus.

Nesses próximos textos eu quero me ater a encontros e como eu os utilizo dentro da narrativa, e para ambientar meus jogadores, como tento mesclar um pouco de cada pilar do RPG em cada encontro. Nesse texto em específico vou me focar no combate, já que normalmente é o pilar que mais se sobressai em muitas mesas.

Costumo encarar um combate da mesma forma que encaro um quebra-cabeças: o combate é um desafio que os personagens vão ter que ultrapassar para alcançar "X"; o combate serve a história e não o contrário, posto deste modo os elaboro da mesma forma que a um quebra-cabeças, pensando em o que quero que meus jogadores sintam nesse combate e como eles podem sobrepujá-lo e, mais importante, se isso será divertido, catártico, dinâmico para eles. Por exemplo, nas nossas primeiras seções da minha atual mesa de "D&D5e", três personagens jogadores nível 1 (paladino, feiticeiro e ranger) e um npc ladino, foram contratados para caçar uma serpe (CR 3) num gigantesco pântano as bordas da cidade.

Os primeiros combates que elaborei na história foram para que eles sentissem e se situassem como o cenário de jogo funciona. Meu objetivo com esses combates era que eles aprendessem que o cenário onde estão jogando agora é um mundo perigoso, que eles não podem ser intempestivos, que devem escolher suas batalhas, que fugir é uma opção e sair gritando "eu ataco" vai ser um caminho rápido para a criar um personagem novo, além do que, combates muitas vezes são vencidos com estratégia e não com força bruta.

Bem, o primeiro combate fora contra a própria Serpe, eles armaram acampamento para passar a noite e ela os atacou, pois estavam dentro de seu território. Ela é muito mais poderosa que os personagens, porém minhas criaturas costumam reagir como animais de verdade, então ela fez a emboscada, os atacou fortemente, mas devido à resistência do grupo, como um caçador frustrado, fugiu. Isso fez com que meus jogadores ficassem atentos, pois agora eles sabem que podem ser atacados de surpresa, além de notarem que vão precisar de estratégia para vencer a criatura. Normalmente quando crio uma criatura, penso exatamente na maneira com a qual ela age em determinadas situações, junto a sua ficha crio uma espécie de roteiro de ações, para me basear durante o combate, isso quando não são criaturas inteligentes. Escolhi a serpe para essa caçada de propósito, exatamente porque ela tem esse tipo de reação, que muitos predadores, quando solitários, têm, se o seu ataque inicial é frustrado, se a presa apresenta muita resistência, eles fogem.

Ok, o grupo chegou ao local onde a criatura fizera seu ninho, uma fortaleza abandonada, cheia de esqueletos. Ali eles enfrentaram hordas de 20 a 30 esqueletos em três combates praticamente seguidos, foi uma seção só de combate, porém totalmente vinculada a exploração. Imagine, quatro personagens nível 1 lutando contra 63 esqueletos, possivelmente vão morrer, certo? Não se usarem estratégia, não se usarem o cenário, não se explorarem o cenário e usarem esse conhecimento contra o inimigo. Novamente, o combate serve a história. Usei esse cenário absurdo para que eles aprendessem que, provavelmente, eles sempre vão estar em desvantagem numérica ou de poder, então ser inteligente e usar o cenário é importante. Eles usaram armadilhas do próprio ambiente para atrair alguns esqueletos, usaram portas e corredores para afunilar os inimigos e pegar um a um, atacaram de forma estratégica para eliminar mais rapidamente inimigos que pareciam que causariam mais dano ou que poderia atacá-los à distância. Do meu lado, como mestre, quando montei o combate, pensei em como eles poderiam usar cenário para a luta, para onde eles poderiam recuar, que locais eles provavelmente conheceriam que poderiam usar para ganhar vantagem, que utensílios eles tem para tal. Porém quando o fiz, tentei não deixar óbvio ou obrigá-los a “ter que” fazer alguma coisa específica. Essa é a pior idéia que um mestre pode ter, obrigar seus jogadores a resolver um desafio de uma determinada forma e só ela irá funcionar. Pense em opções diferente, dê opções diferentes e durante a narração apresente os fatos e locais como são, sem focar especificamente em como você acha que eles devem resolver uma situação. Meus jogadores não usaram todas as opções que prepararei, mas usaram a criatividade, usaram o cenário, e tomaram atitudes que eu não esperava. Mais importante, eles aprenderem “a lição” que eu queria ensinar, e saíram se gabando de ter vencido 60 esqueletos ainda no nível 1.

Um exemplo prático de um desses combates: a terceira das hordas que eles enfrentaram com 25 esqueletos aproximadamente, o grupo já estava cansado, sem muitas magias e sem alguns pontos de vida, eles chegaram por uma espécie de guarita de um lado do pátio, os esqueletos estavam espalhados pelo local e na guarita do outro lado. Quando elaborei o encontro levei em conta o estado que o grupo estaria e fiz com que, nas portas só pudessem passar de dois a dois, já que os números inimigos eram grandes comparado com o grupo, de forma que pudessem usar isso como vantagem. Além disso a guarita tinha pequenas janelas, que dariam cobertura a um arqueiro, caso eles precisassem. O cenário fora montado de forma que, se usado de maneira inteligente, os inimigos fossem "escoar" em uma certa velocidade, já que eles poderiam afunilá-los nas portas. Os jogadores usaram isso para atacar alguns esqueletos desavisadamente (meus esqueletos não tem bem um "senso de comunidade", ou seja, se eles matassem um esqueleto em um só golpe sem serem vistos, os outros não se alertavam), o que fez com que tentassem usar de mais uma estratégia quando possível, furtividade, além de fazer com que passassem a prestar atenção em seus posicionamentos dentro do ambiente, para não alertar ninguém e para atacar de forma precisa.

A escolha dos esqueletos também não foi aleatória, eles estavam ali para "ensinar" mais uma mecânica que eles vão ter que lidar bastante durante essa campanha, resistências e vulnerabilidades. Os meus esqueletos têm resistência a Corte, Perfuração, Balístico (tipo de dano que usamos para armas de fogo), Fogo, Frio, Elétrico e Necrótico e vulnerabilidade a Impacto, Radiante e Ácido (dano ácido, inclusive, pode causar algumas reações, como, derreter pernas e braços da criatura, fazendo com que ela passe a agir de forma um pouco diferente). Usando os esqueletos em conjunto com outros tipos mortos-vivos, com resistências e vulnerabilidades diferentes, foi proposital exatamente para eles notarem que resistências e vulnerabilidades são algo comum e eles vão ter que pesquisar, testar, tentar, que só bater não vai ser a solução, ao menos, não sem eles pensarem com o que bater.

Outra situação que usei para fazer com que meus jogadores sempre pensem em suas posições no cenário onde se encontram, que exploração é importante a todo momento, principalmente em um combate e para que se lembrem que juntos eles são mais fortes, por isso eles são um grupo, por isso eles atuam juntos, os laços de amizade e companheirismo dos personagens são muito importantes, mesmo em um combate.

Eles estavam em um local que sabiam haver mortos vivos, não sabiam de que tipo, havia uma passagem estreita onde teriam que ir de um por um, o patrulheiro foi a frente. Descrevi que a passagem estava em meio a uma murada que desmoronou e que havia um buraco no teto para um possível segundo andar, mas que parecia inacessível. Assim que todos entraram na passagem, e o patrulheiro estava bem à frente e separado do grupo as criaturas atacaram, surgiram de trás, da frente e da tal passagem no teto separando o grupo do patrulheiro, esses mortos vivos podiam andar nas paredes e no teto. Montei o local exatamente para isso, tentar dividir o grupo, para lembrá-los de trabalhar em equipe, lembrá-los de que todos ali são importantes. Nesse caso usei inimigos um pouco mais fortes que os esqueletos, porem que não tinham defesas muito altas, exatamente para não causar tanto estrago, ninguém chegou a cair exatamente porque a prioridade deles foi tentar unir-se novamente. Desde então eles se movimentam muito mais taticamente, e sempre tentam proteger uns aos outros.

Agora, entrando um pouco mais na parte interpretativa dentro de um combate. O grupo estava descendo um rio de barco, as criaturas que atacaram meio que ficavam "invisíveis" enquanto debaixo d'água, o que facilitava sua aproximação sem serem percebidas, além de fazer com que elas pudessem atacar e recuar sem receber ataques de oportunidade, ou mesmo atacar de locais diferentes a cada turno. Para piorar haviam inocentes no local que também estavam sendo atacados pelas criaturas, os ataques vinham de surpresa, descoordenadamente e de locais diferentes, além de poderem vir contra outras pessoas que não os personagens jogadores, de forma a dar um dinamismo bem diferente ao combate, além de um peso moral. A ideia aqui foi fazer com que eles se lembrem que ações têm consequências e que o mundo acontece independente dos heróis. Eles se focando unicamente em proteger o grupo ou se ignorassem as criaturas e fugissem os inocentes iriam morrer com toda certeza e provavelmente as consequências dessas mortes acarretariam em sua reputação. Outra coisa era aprender que nem toda criatura simplesmente vai te atacar, as criaturas tem estratégias próprias, como essas que tentavam puxar as pessoas para água para tentar afogá-las.

Ultimo exemplo que posso colocar aqui quanto a combates fora a hidra, ela era um filhote ainda, mas tinha 12 metros de comprimento e realizava quatro ataques por turno, além de regenerar 2d4 pontos de vida por turno também, o que para o nível dos personagens jogadores era um grande desafio. Usei-a para dar um escopo das criaturas que eles podem encontrar nesse cenário. Eu costumo mestrar deixando meus jogadores soltos pelo mundo e fazendo o que quiserem, as vezes eu os direciono para um ou outro arco, as vezes puxo-os com ganchos que eles me deram nas suas histórias, mas em suma, eles são os protagonistas, se eles quiserem cagar para tudo e montar um grupo de aventureiros para explorar os pântanos no meio do continente, eles tem total liberdade para tal. Visto isso, eles têm que lembrar que o mundo existe independente deles, não existe um “nivelamento com os inimigos”, se eles forem para um local onde normalmente há criaturas muito poderosas, as criaturas vão estar lá independente do nível que eles estão! Eu não posso protegê-los das decisões que eles tomarem... por pior que elas sejam as vezes... Voltando a Hidra, ela sendo um filhote e mesmo assim sendo muito poderosa, fez com que eles tenham uma noção de que coisas perigosas existem lá fora. Outra foi reforçar a importância de estratégia e trabalho em equipe, já que era necessário causar dano o suficiente e do tipo certo todo turno para que ela não se regenerasse totalmente. Durante o combate, inclusive, a hidra agarrou o paladino, fazendo com que parte do dano causado fosse dividido entre a hidra e ele, fazendo a dinâmica da luta mudar completamente, e fazendo com que um inimigo que estava quase morto pudesse ganhar um tempo para se regenerar, já que eles evitaram atacar,  o que gerou outra lição, “perder por ação é sempre melhor que por inação”.  Outros casos saíram deste combate, influenciando diretamente a interpretação no grupo, que foi a morte de um npc querido de alguns jogadores que foi levado pelos aventureiros para acompanhar o grupo durante o combate. Isso fez com que os jogadores questionassem suas ações e também os fez lembrar que “ações têm consequências”.

Para finalizar, uma coisa muito comum em muitas mesas são os encontros aleatórios e costumo usá-los de maneira um pouco diferente. Não estou dizendo que não tenho uma tabela de encontros aleatórios que não recorra a ela volta e meia, mas que mesmo quando a utilizo tento inserir esse combate, ou acontecimento, dentro de algum contexto narrativo. Não sei, um grupo de bandidos tenta roubar o grupo, está ai um possível encontro social que pode se transformar em um combate ou não... o grupo entrou no território de uma besta, está ai uma chance do druida tentar “domar” uma criatura, ou tentar acalmá-la e descobrir que, ela só está atacando porque sua parceira esta grávida, e ela está tentando proteger o território ou mesmo ela está faminta e talvez o grupo pode tentar alimentá-la em vez de lutar... talvez o encontro aleatório pode não ser com uma criatura, mas sim com uma ruína antiga para o grupo explorar (a qual você, mestre espero, já tem alguns mapas de ruínas diferentes pré prontos para usar)... ou mesmo um bando de graciosos cervos com chifres brilhantes está migrando naquela região, gerando um espetáculo visual demonstrando o quão belo aquele mundo pode ser. O importante é que, mesmo com um encontro aleatório o combate não é a única opção, mesmo em um encontro aleatório você tem oportunidade de inserir exploração, interpretação, encantamento ou criação de mundo. O combate está ali para engrandecer a sua narrativa, para apimentar a história e para desafiar seus jogadores.


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